Camogli, Itália

Em todos os tempos, os viajantes pensam em voltar para casa, inclusive os soldados que vão para as guerras.

Camogli, Itália

As cidades italianas são muito ricas em cultura, porém, dentre tantos aspectos culturais, o que mais me desperta o interesse em qualquer viagem é ter contato com as histórias locais que se refletem na formação de cada povo.

A cidade litorânea de Camogli[1] (pronuncia-se ‘Camólhi’), por exemplo, é uma comuna de Gênova, a capital da Ligúria, situada próxima à celebrada Portofino, na Riviera Italiana. Ali, desde tempos muito antigos, os pescadores saíam para os demorados trabalhos do mar. Por isso, resolveram pintar suas casas de cores fortes e diferenciadas para que, em seu ansiado retorno, pudessem identificá-las à distância, em meio às brumas do oceano.

Tudo o que os pescadores queriam, após dias de labuta, era voltar para casa, a casa de suas mulheres /mogli, o que, através do tempo, teria originado o nome desta cidade ao se juntar as sílabas CA, de casa, e MOGLI, de mulheres, daí resultando Camogli, casa das mulheres, casa das esposas.

Essa história se conecta com os versos da Suíte do Pescador[2], também chamada Canção da Partida, de Caymmi, que igualmente fala em voltar para casa: “Minha jangada vai sair pro mar / vou trabalhar meu bem-querer / se Deus quiser quando eu voltar do mar / um peixe bom eu vou trazer / Meus companheiros também vão voltar / e a Deus do céu vamos agradecer. / A Estrela Dalva me acompanha / iluminando o meu caminho / eu sei que nunca estou sozinho / pois tem alguém que está pensando em mim.”

Em todos os tempos, os viajantes pensam em voltar para casa, inclusive os soldados que vão para as guerras. Tal sentimento também está expresso na Canção do Expedicionário Brasileiro[3], composta quando as tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) foram lutar na Itália durante a Segunda Grande Guerra (1939-1945): “Por mais terras que eu percorra / Não permita Deus que eu morra / Sem que volte para lá (a pátria, a terra natal, a casa, a família) / Sem que leve por divisa / Esse V que simboliza/ A vitória que virá”.

Porém o mais célebre exemplo da vontade humana de retornar ao lar foi o de Ulisses, que os gregos chamavam de Odisseu, nome que deu origem à celebre Odisséia[4], escrita por Homero. Na ânsia do seu retorno para casa, dentre tantos atropelos aventurosos que lhe retardavam a viagem, Ulisses chegou à ilha onde vivia a sedutora e caprichosa ninfa Calipso, despertando-lhe uma enorme paixão a ponto de não querer deixá-lo ir embora de lá. Num apelo extremo, ela lhe oferece, além da imortalidade, a eterna juventude. Não era pouca coisa; diante dessa tentadora oferta, quem ousaria lhe dizer não!? Ulisses ouviu a sedutora proposta dessa deusa e respondeu que, para ele, nada era mais valioso do que voltar a ser o rei de Ítaca e viver em sua própria terra ao lado dos seus, principalmente, junto de sua esposa, Penélope, e do filho, Telêmaco, deixado pequenino quando partiu. Que decepção, que desalento para a poderosa Calipso… tudo o que Ulisses mais queria era rever sua Ítaca, empreendendo finalmente, após 10 anos de errâncias por terras e mares desconhecidos, o tão protelado retorno ao seu umbigo natal.

 

 

Sônia Othon

Natal, outubro, 2024

[1] Camogli. https://pt.wikipedia.org/wiki/Camogli

 

[2] Suíte do Pescador, composta em 1957 por Dorival Caymmi (Salvador-BA, 30/04/1914 - Rio de Janeiro-RJ, 16/08/2008). https://pt.wikipedia.org/wiki/Su%C3%ADte_do_Pescador

 

[3] Composição do maestro Spartaco Rossi (São Paulo-SP, 12/02/1904 – São Paulo-SP, 17/02/1983) e letra do poeta Guilherme de Almeida (Campinas-SP, 24/07/1890 – São Paulo-SP, 11/07/1969), esta canção foi composta em agosto de 1944 e lançada em disco pela gravadora Odeon, na interpretação de Francisco Alves (Rio de Janeiro-RJ, 19/08/1898 – Pindamonhangaba-SP, 17/09/1952), então um dos cantores de maior sucesso no rádio brasileiro. Para ler o texto completo e ouvir a música, acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=lmqoUPuNBNM

 

[4] ODISSÉIA, famoso poema épico atribuído a Homero, que também teria escrito a ILÍADA. Essas duas obras épicas são tidas como os primeiros modelos de literatura universal. Os heróis de ambas são praticamente os mesmos, “sendo Odisseus, Ulisses, a figura central e máxima. A Odisséia, tal como a conhecemos, divide-se em 24 cantos com 12.000 versos hexâmetros. O término da guerra de Tróia trouxe como consequência, após 10 anos de lutas, um ciclo de lendas que se formaram com os guerreiros que retornavam para seus lares. São os Nóstoi, i. é, Retornos. A Odisséia é o Nóstos de Ulisses.”  SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário da Mitologia Greco-Latina. Belo Horizonte, Editora Itatiaia Limitada, 1965.