VIROU ARAPUCA
O Código de Trânsito, que é uma das melhores coisas que aconteceu nesse país de contravenções, está se transformando num abuso porque aplicar a lei já é difícil para juízes e desembargadores, avalie para um guarda de trânsito, desqualificados, com uma caneta à mão e o sentimento do mundo.
Valério Mesquita*
Mais do que o Imposto de Renda, o IPTU, a dengue, a chikungunya, o Covid, o furor das multas de trânsito é a nova virose que enerva o natalense. O Código Nacional de Trânsito está se tornando uma arma nas mãos dos guardas despreparados, muito mais perigosamente do que o próprio veículo na direção dos motoristas imprudentes. Como o trânsito é uma matéria altamente disciplinadora, um código que vem para punir os seus contraventores deve, de partida, merecer um inicial trabalho pedagógico de orientação e não, ser aplicado doidivanamente por agentes mal humorados. O Código de Trânsito, que é uma das melhores coisas que aconteceu nesse país de contravenções, está se transformando num abuso porque aplicar a lei já é difícil para juízes e desembargadores, avalie para um guarda de trânsito, desqualificados, com uma caneta à mão e o sentimento do mundo. Outro dia, eu descia a Hermes da Fonsêca no sol quente do meio dia e contemplei uma cena insólita no canteiro central da avenida, em frente a Escola Doméstica. Óculos no meio do nariz, como de costume, um jornalista e amigo manuseava as tórridas páginas do código para explicar ao guarda impassível e doutorável, as contradições da lex talionis.
Comigo aconteceu na Prudente de Morais, sentido norte/sul. Antes do sinal luminoso da rótula do Arena das Dunas parei o automóvel quando o velho semáforo amarelou. Senti-me obediente e disciplinado. Pelo retrovisor, atrás de mim, flagrei um guarda rabiscando à bordo de uma moto verde-amarela. Procurei, assustado, a infração. Dois centímetros dos pneus dianteiros sombrearam a faixa branca do pedestre. Pensei protestar mais adiante. Lembrei-me da tolerância cristã. Recordei os arroubos parlamentares de Nélter Queiroz certa vez e desisti da contestação olímpica e retilínea. Às vezes, eu reflito que existe, uma deliberada intenção de transformar a STTU em empresa de economia mista. Com o volume de recursos provenientes das multas desvairadas, dificilmente nenhum outro órgão estatal suplantaria a sua receita. Não se trata de oposição ao sistema de trânsito. Mas, de uma postura cética ante uma avalanche de multas sem um critério orientacional que eduque o contraventor sem revoltá-lo. Sem que ele veja no manual um instrumento discricionário, antidemocrático e ditatorial.
As infrações mínimas de trânsito estão sendo punidas de uma forma geométrica, caótica e até irracional. A situação é preocupante. O cidadão comum está sendo confundido com os contumazes irresponsáveis do trânsito. A multa virou rotina. O natalense, já pensa vender o seu carro, porque a multa ingressou no seu orçamento mensal assim como as taxas de luz, água, telefone, IPTU, cartão de crédito, supermercado, etc., além da ferocidade anual do leão do Imposto de Renda. Dirigir hoje em dia, além de ser perigoso para a vida também o é para o bolso. Tudo depende de uma acelerada ou de um freio brusco, no lusco-fusco, dos bruxos à espreita, de lápis e papel à mão.
(*) Escritor