Um projeto de qualificação profissional para mais de 1.300 pessoas apenadas no Rio Grande do Norte vai entregar, neste mês, certificados de formação a um grupo de mulheres trans na Cadeia Pública de Natal. A turma é formada por 16 pessoas, entre 22 e 52 anos.
A capacitação é voltada à área de pintura na construção civil e integra as ações previstas em um acordo firmado em 2024 entre o Ministério Público do Trabalho (MPT-RN) e o SENAI-RN, com apoio da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP), do Rio Grande do Norte.
O objetivo da parceria é ampliar oportunidades de emprego e empreendedorismo para pessoas privadas de liberdade, como forma de promover a reintegração social e reduzir a reincidência criminal no estado.
As atividades são desenvolvidas em unidades prisionais nos municípios de Natal, Parnamirim, Ceará Mirim, Nísia Floresta, Mossoró e Caicó, com cursos, para homens e mulheres, nas áreas de alimentos, construção civil e confecção.
O curso de pintura de obras para mulheres trans, na capital, foi iniciado em 17 de março deste ano, e tem programação até o próximo dia 14. São, no total, 160 horas de formação.
Os módulos incluem desde conceitos básicos, como “o que é tinta”, até conhecimentos sobre fabricação e características dos produtos, ferramentas e utensílios utilizados na prática; tipos de superfícies a serem pintadas; preparação, aplicação de materiais, efeitos, texturas, e limpeza do material de trabalho, além de fundamentos de segurança no trabalho, de meio ambiente e da qualidade aplicados a canteiros de obras.
A turma é formada por 16 detentas, que ocupam uma ala criada em janeiro, no presídio, para detentos que se identificam como mulheres trans — pessoas registradas como homens ao nascer, mas que se reconhecem como mulheres.
Oportunidades
“Eu vou falar por mim. Eu sou analfabeta de pai e mãe”, disse uma das alunas, minutos antes de se deparar com baldes de massa corrida e utensílios como espátulas e bandejas, usados em uma aula, no final de abril, para facilitar a aplicação de produtos e evitar desperdícios. “Eu já venho há um tempo na prisão e a única oportunidade que tive de fazer um curso original foi essa. Então isso aqui, para mim, foi um milagre que aconteceu. Foi um milagre que aconteceu na minha vida”, analisou, em meio a outras detentas.
Uma colega de turma complementou que a formação profissional traz a sensação de que “a vida vai evoluir”. “Porque eu não tinha profissão nenhuma. E agora vejo uma oportunidade para quem está dentro do presídio, de poder aprender algo para sair da vida que vivia”.
Histórias de pessoas que investiram na educação e de alunos e alunas que viraram professores e professoras são contadas pelo instrutor da turma e servem de inspiração para o grupo, comenta outra participante. “Eu coloquei na minha mente que vou dar o melhor de mim porque, lá para frente, também quero entrar nesse mundo”, disse.
A capacitação está inserida em um contexto mais amplo de projetos sociais que o SENAI-RN desenvolve, e também em esforços voltados ao Pacto Global de Direitos Humanos, Trabalho, Meio Ambiente e Anticorrupção da ONU, que tem a instituição como signatária.
“Nós temos o compromisso com a ONU de entregar educação de qualidade. Temos o compromisso de formar pessoas, de entregar qualificação para a indústria. E é o que estamos fazendo”, disse a diretora dos Centros de Educação e Tecnologias do SENAI-RN, em Natal, Amora Vieira, durante visita para ouvir a percepção das alunas sobre o curso ministrado na Cadeia, além de perspectivas para o futuro, a partir da formação.
“Vocês estão recebendo uma qualificação e, ao final, serão oficialmente reconhecidas como profissionais da área de pintura predial, com certificado. Vocês terão uma profissão. E eu posso dizer que o SENAI também recebe o interesse da indústria de empregar pessoas LGBTQIA + (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais e outras)”, disse Vieira. “Existe demanda, mas a escolha do setor se dá por formação, por mérito, por competência profissional. Pela pessoa que sabe executar a atividade, que tem uma formação profissional. Essa é a primeira coisa que a indústria vê”.
A aula acompanhada pela diretora focou em técnicas de emassamento, a etapa em que superfícies são niveladas para receber a pintura. “Nós vamos fazer a aplicação da massa, esperar o tempo de cura (o período necessário para que o produto atinja a resistência e estabilidade ideais após aplicado) e lixar, para só depois iniciar o processo de pintura”, explicou o instrutor de Educação do SENAI-RN na área, Lindemberg Matias.
“A turma ainda não tinha conhecimento voltado à construção civil. É o primeiro contato delas com a parte de pintura, mas elas têm se mostrado interessadas e a evolução é bem perceptível”, observa. “A gente escuta muitos relatos de que, quando saírem, elas terão uma profissão. É essa sensação de poder evoluir, de poder fazer uma atividade lá fora”.
O curso de pintura de obras para mulheres trans, na capital, foi iniciado em 17 de março deste ano, e tem programação até o próximo dia 14. São, no total, 160 horas de formação
Ressocialização
A subprocuradora-geral do Trabalho, Ileana Neiva, afirma que ações com foco em educação são “contribuições para a redução de desigualdades sociais e para gerar possibilidades de ressocialização das pessoas presas”. No caso das pessoas trans, ela ressalta a importância do respeito à dignidade, ao direito à identidade de gênero e ao uso do nome social.
Ela também destaca a importância de estimular a participação desse grupo da população no mercado de trabalho. “As empresas, atualmente, estão cientes da sua responsabilidade com a inclusão de grupos sociais vulnerabilizados, como as pessoas trans, e, para cumprir políticas de diversidade, têm promovido contratações”, afirma. Ileana cita ainda que a atuação do MPT em iniciativas como o projeto LGBTQIAPN+ e a ação ‘Visibilidade TRANS’ busca combater a discriminação e ampliar a inclusão dessas pessoas no mercado.
A visita à turma do curso também foi acompanhada pelo diretor da Cadeia Pública de Natal, Rafael Dantas, pela secretária-adjunta de Administração Penitenciária do Rio Grande do Norte, Arméli Brennand, e por Roberiana Bezerra, também da SEAP. “O desejo de buscar a ressocialização tem movido a todos nós”, disse Brennand, diante das participantes do projeto. “Em qualquer ponto do caminho, que a gente possa refazer a nossa trajetória”.
O acordo firmado entre o MPT-RN e o SENAI prevê a formação de um total de 1.340 pessoas privadas de liberdade em cursos de pedreiros/as de alvenaria, pintores/as de obras, encanadores/as hidráulicos, eletricistas instaladores/as prediais, padeiros/as, confeiteiros/as, costureiros/as industriais do vestuário, mecânicos/as de máquinas de costura e mecânicos/as de refrigeração.
Estão programados, ainda, cursos de aperfeiçoamento profissional para fabricação de salgados e bolos regionais. O programa de capacitação representa um investimento total de R$ 2,3 milhões, incluindo R$ 1 milhão de contrapartida do SENAI.